Mensagem quaresmal do Bispo do Porto em Quarta-Feira de Cinzas

D. Manuel Clemente, Bispo do Porto, na sua Mensagem quaresmal refere que começamos esta Quaresma particularmente necessitados dela, por nós e por todos, na Igreja e na sociedade que integramos.

Na sociedade portuguesa, antes de mais, onde dificuldades persistentes como que reduziram a cinzas muitas viabilidades que pareciam seguras e muitas previsões que se criam certas. Com maior ou menor inadvertência nossa, com maior ou menor inadvertência alheia, o resultado não foi o esperado e ainda há muito a resolver no âmbito particular e público, para que os inegáveis esforços de quem pode e deve e a notável persistência de quem não se resigna deem o resultado pretendido.

A Quaresma é do calendário cristão e aos cristãos primeiramente interessa e incumbe.
Lembrando ao vivo os quarenta anos do Povo de Deus no deserto, em duríssima libertação que só poucos alcançaram, lembrando ainda mais os quarenta dias de Jesus, no deserto em que venceu todas as tentações principais, é oportunidade maior para fazermos nossa a sua vitória sobre quanto nos afasta de Deus, dos outros e do melhor de nós mesmos.

Os exercícios quaresmais são a obra e o fruto duma fé verdadeira. Oração, esmola e jejum, na designação tradicional, podem traduzir-se por exercício espiritual de filiação autêntica, aproximação concreta das necessidades alheias e domínio de apetites vários que nos distraem do essencial. Conjugam-se aliás e muito bem, porque quem procura antes de mais o reino de Deus e a sua justiça, compreende melhor o que deve aos outros e consequentemente partilha do que tem e do que poupa.

Não precisamos de grandes cogitações para concluir da oportunidade redobrada de Quaresmas sérias. Os discípulos de Jesus Cristo admiram-lhe a plena liberdade sobre si próprio, percorrendo a estreita senda que, nele mesmo, Deus abria ao mundo. Estreita senda, que a sua Ressurreição transformou em viabilidade garantida para quem a queira percorrer, no mesmo Espírito e com a sua graça. Se olharmos em redor, para outras possibilidades que porventura nos apresentem, continuaremos a responder com as palavras de Pedro, apesar de tudo e até apesar de nós: «A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna!» (Jo 6, 68).

Acolhamos de coração entregue as palavras de Paulo, no trecho que ouvimos: «Como colaboradores de Deus, nós vos exortamos a que não recebais em vão a sua graça. […] Este é o tempo favorável, este é o dia da salvação!».

Os discípulos de Cristo hão de ser, especialmente agora, sinais vivos de esperança certa, nos mais diversos ambientes e setores em que a coexistência decorra. Assim o concluímos por nós, mas sobretudo o ganhamos de Cristo e do que nos oferece.

Algumas décadas de otimismo apressado tentaram-nos a considerar mais “horizontalmente” as coisas, o que acabou por nos desencantar de nós mesmos, como pretendeu desencantar o mundo. Tudo estaria ao nosso alcance, dizia-se, mas nem sempre se atingiram novos patamares de humanidade livre e solidária - e muito pelo contrário, nalguns casos mais gritantes. De facto, temos de nos ver de mais alto para nos abarcarmos a todos.

Ao invés de tal horizontalismo, Jesus, de pés bem assentes na terra que foi sua, apresentou-se inteiramente “vertical”, em si mesmo abrindo tanto a terra ao céu como o céu à terra.

Oiçamos de novo e guardemos melhor as palavras de Paulo: «A Cristo, que não conhecera o pecado, identificou-O Deus com o pecado por amor de nós, para que em Cristo nos tornássemos justiça de Deus».
Reparemos que a iniciativa é divina, desvendando-nos o próprio modo de ser e agir de Deus. É Deus Pai que nos oferece em Cristo a reconciliação que por nós não atingiríamos nunca, como a não conseguiríamos agora. Adianta-se no perdão, quase substituindo o ofensor. E tal acontece porque, em Deus, a justiça tem outra raiz, que se chama propriamente “amor”.

Caríssimos irmãos e condiocesanos, retomemo-nos diante de Deus como permanentes devedores dum resgate que não mereceríamos.
Por nós, não podemos nem queremos considerar-nos outra coisa senão pobres pecadores, constantemente carecidos do perdão de Deus. Seremos até a única comunidade humana que, ao reunir-se, começa por se confessar pecadora, diante de Deus e dos homens, «por pensamentos e palavras, atos e omissões», e insistindo cada um «por minha culpa, minha culpa, minha tão grande culpa».

Nada sucede por nós, mas porque em nós atua o amor divino, que só “merecemos” porque a ele nos rendemos, sem a mínima presunção da nossa parte.

Em suma, caríssimos irmãos: Acolhamos esta Quaresma como oportunidade concreta de libertação de raiz. Por nós, não somos melhores do que outros, mas queremos substituir qualquer auto-convencimento pela conversão sem reservas à misericórdia divina.

Quem se sabe recuperado pela graça de Cristo, confessa um Deus que não desiste de nenhuma das suas criaturas e mantém constantemente a vontade criadora que subjaz a toda a existência.

Sobretudo por isso, estamos com todos os outros nas inevitáveis fronteiras da justiça, da solidariedade e da paz. E que aqueles que connosco não desistem de resolver todas as crises, das famílias ao Estado, da economia à sociedade, da escola à cultura, possam confirmar que, ali mesmo onde está um discípulo de Cristo, não há desistência prévia, não há pessimismo paralisante, não há cansaço insuperável.
Ofereçamos esta exercitação quaresmal de crentes como incentivo nacional de esperança!

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