Homilia do Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, na ordenação de D. José Traquina



Ascensão do Senhor, promessa da ascensão do mundo

 
Celebramos hoje a ascensão do Senhor, ascendendo também ao mais elevado de nós próprios, das nossas aspirações e anseios. Se há apelo íntimo e inextinguível que nos define como humanos, nos materializa como civilização e nos anima como cultura, é aí mesmo que reside, nessa incontida vontade de sermos mais e melhor.



A ela devemos o melhor do que está feito e o melhor que apresentamos. A ela, essa vontade de “subir na vida”, podemos atribuir, pelo contrário, o pior do que acontece no mundo, quando se degrada e isola em materialismo egoísta, tanto particular como coletivo.

Como tudo o que é criatural e humano, precisa de ser completada e redimida: de vontade de subir na vida, precisa de transformar-se em aspiração a uma vida mais subida, como em Cristo aconteceu e no seu Espírito nos é possibilitado.
Vida de caridade perfeita, que só o Espírito infunde nos nossos corações (cf. Rm 5, 5), pois se trata da solidariedade levada ao ponto em que Cristo a viveu e derramou. Desta que precisamos agora, desta que precisaremos sempre, rumo àquela coesão social que tanto urge e que a comunhão eclesial há de assinalar, como que sacramento dela (cf. Lumen Gentium, 1).

Vida subida em Cristo, que o seu Espírito nos proporciona, em conversão permanente de critérios e escolhas. Assim aconteceu com os primeiros e assim acontecerá connosco, quando escolhermos ser dos últimos, tomando para aqui o que também foi dito: «há últimos que serão dos primeiros» (Lc 13, 30). Basta de grandezas não convertidas, ostentações vazias e contrafações completas da ascensão verdadeira. Como discípulos de Cristo, o nosso critério é outro, e apenas este, que lhe ouviremos sempre: «Quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo» (Mt 20, 27). E ainda: «O maior de entre vós será o vosso servo. Quem se exaltar será humilhado e quem se humilhar será exaltado» (Mt 23, 11-12).

É esta a ascensão que celebramos hoje, atingido cume e fonte inesgotável daquele Reino de que a cruz foi o trono e em que os espinhos floriram em magnífica coroa.
Reino que os primeiros discípulos também esperavam e a presença do Ressuscitado lhes parecia garantir, instantâneo e súbito, grandioso e imperativo. Ouvimo-los, há pouco: «Senhor, é agora que vais restaurar o reino de Israel?». Mas a resposta converteu-lhes as expectativas em missão: «Não vos compete saber os tempos ou os momentos que o Pai determinou com a sua autoridade; mas recebereis a força do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém e em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra».

Assim na primeira leitura, dos Atos dos Apóstolos. Mudando de lugar para acrescentar significados, o Evangelho coloca os discípulos na Galileia, onde tinham começado há uns três anos, para recomeçarem agora, para toda a terra e para o tempo todo: «Ide e ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a cumprir tudo o que vos mandei». Numa companhia garantida: «Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos».
Assim hoje e aqui com todos nós, caríssimos irmãos e irmãs; e assim particularmente contigo, caríssimo D. José Traquina, que o mesmo Espírito agregará de seguida à sucessão apostólica daqueles onze: Não saberás tu, nem saberemos nós, o que só a Deus compete, princípio e fim de tudo e de todos... Mas saberás o quê e saberás com quem. Saberás do Reino, no acontecer eclesial de cada dia, que também por ti e tão centralmente sucederá. Saberás com quem, na intimidade de Cristo que tudo garante, aprofunda e alarga.

Sabemos o que seja o Reino de Deus, apresentado em Cristo, como pleno cumprimento da vontade do Pai. Sabemos o seu enunciado, na oração do Pai Nosso: pão que seja de todos e plenamente satisfaça, reconciliação universal e no coração de cada um, libertação do mal e dos mais profundos cativeiros da alma.
Em Jesus e em torno de Jesus tal começara, de modo ativo e não ostensivo, como igualmente o dizia: «O Reino de Deus não vem de maneira ostensiva. Ninguém poderá afirmar: “Ei-lo aqui” ou “ei-lo ali”, pois o Reino de Deus já está entre vós» (Lc 17, 20-21). «Entre» ou «no meio» de nós, assim é o Reino, em Jesus começado e pelo seu Espírito alargado, século após século, terra após terra, através da Igreja, seu corpo ativo para bem do mundo. Sim, da Igreja que a Carta aos Efésios nos apresentou como «Corpo [de Cristo], a plenitude d’Aquele que preenche tudo em todos».

Como bispo da Igreja e a trabalhar no Patriarcado, inseres-te a novo título na caminhada sinodal que, até ao fim de 2016, todos empreenderemos para localizar também aqui o claríssimo desígnio do nosso Papa Francisco, tão sugestivamente enunciado como «o sonho missionário de chegar a todos» (Evangelii Gaudium, 31).
À maneira de Cristo e unicamente no seu Espírito, trata-se de reproduzir em cada comunidade cristã o seu caminho de imanência ascendente, como aquela semente lançada à terra, que daí mesmo florescerá por fim. Nos mais pequenos gestos, nas presenças mais concretas e tantas vezes mais sofridas do acontecer da vida de toda a gente, com especial atenção aos mais pobres de todas as pobrezas, aí mesmo encontrará cada discípulo de Cristo e cada comunidade o indispensável campo da sua ação e compromisso.

É sempre de ascensão que se trata, mas no significado autêntico do percurso de Cristo, da incarnação à glória, trilhado agora pelo seu corpo eclesial e ao serviço da verdadeira ascensão do mundo. Cabendo muito bem aqui o ensinamento conciliar: Lembra-nos que, como discípulos de Cristo, «também nós devemos levar a cruz que a carne e o mundo impõem aos ombros dos que buscam a paz e a justiça». E que, levando o seu Espírito, sobremaneira a alguns, «a dar um testemunho manifesto do desejo da morada celeste e a mantê-lo vivo na família humana», também chama prementemente «ao serviço terreno dos homens, preparando com esta atividade a matéria do reino dos céus». É no mundo e bem no mundo que o Reino se inicia a partir de Cristo e na difusão do Espírito, libertando os que impele «para que, renunciando ao amor próprio e reunindo todas as energias terrestres em favor da vida humana, se lancem para as realidades futuras, em que a própria humanidade se tornará uma oferenda agradável a Deus» (Gaudium et Spes, 38).
Caríssimo D. José Traquina: É este roteiro de ascensão autêntica que tens seguido, num caminho cristão e sacerdotal agora confirmado pelo nosso Papa Francisco. Assim prosseguirás, como sucessor dos Apóstolos, ajudando-nos a todos no percurso sinodal que estamos a começar. Não te faltará o alento divino e a presença da Mãe de Cristo, primeira seguidora do seu Filho e solícita Rainha dos Apóstolos.

Santa Maria de Belém, 1 de junho de 2014
+ Manuel Clemente


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